Sopa dourada


Sopa dourada
por Rica Sainov in Natal em Palavras, volume 2, Chiado BOOKS

Acordo. Abro ligeiramente os olhos. As pálpebras colam, estão remelentas. É noite, custa-me acolher a torrente de claridade das imensas luzinhas pulsantes em ritmo psicadélico.

Estão todos felizes em meu redor. Trocam abraços e presentes envoltos em papel reluzente e laços de cetim. Falam incessantemente enquanto degustam, deliciados, doces da quadra. Cheira bem. Cheira a sopa dourada, com amêndoas torradas, como sempre fiz questão de preparar, todos estes anos, nesta altura especial. Quero levantar-me para abraçá-los também. As pernas não deixam, não tenho forças. Iço a minha mão uns centímetros acima do apoio de braço da minha cadeira metálica para acenar-lhes. Quero dizer-lhes que estou aqui, que lhes quero bem. Tento vociferar algo. Faço-o com veemência. Saem, contudo, uns sons esdrúxulos que eles não compreendem. Atentos ao meu frenesim, todos param de falar. Toda a sala pára. Fica suspensa, curiosa da minha reação. Sinto as suas emoções. Olhos ternos e complacentes, cheios de amor. Vejo as minhas filhas e os seus maridos. Vejo os seus filhos e os filhos deles. Quais os seus nomes? Quero recordar-me, mas não consigo… Esforço-me para falar qualquer coisa que eles entendam.

Sai-me: “MAMUTE.” As crianças no chão soltam risadas. Os mais crescidos, na pândega, comentam entre si. Escuto fragmentos:

“Coitadinha da Dolores”, “já não diz coisa com coisa” …

Em dificuldade, repito: “MA-MUTE…”

Silêncio, uma vez mais. Os adultos, meio perplexos, mediante a minha teimosia, procuram mentalmente decifrar a mensagem. A Sofia, a minha linda menina, destacando-se dos restantes, levanta-se e diz alegremente, cantando, com a satisfação típica de quem foi a primeira a descobrir:

“Já percebi o que a mãe está a tentar dizer.”

Dirige-se, com todos a observar, à gaveta de baixo da cómoda, onde estão guardadas todas as minhas recordações. Tira de lá o velho cordão de ouro com o medalhão com a fotografia do meu querido Berto. Onde está ele? Não o vejo… assolou-me a saudade. Fico com vontade de chorar. A Sofia senta-se agora ao meu lado, encostada a mim. Sinto o seu calor.

Abre o medalhão. Lê para todos:

“Foi no Natal que te conheci. Foi no Natal que prometemos ficar juntos para sempre. Feliz Natal, o teu Berto.” Baixa os olhos. Faz uma pausa. Logo abaixo da dedicatória, recordo-me bem, está gravado em letras garrafais: “MAMUTE”, que a minha Sofia repete em voz alta, em uníssono com o meu pensamento.

“Ela quer manifestar-nos, nesta época especial, o carinho, a compaixão e o amor que eles sempre tiveram por nós…” — declara Sofia, emocionada. “Ela não está xexé afinal…”

Começaram todos a lembrar-se, finalmente, que o Berto e eu costumávamos trocar amiúde esta expressão, um com o outro, e depois com todos eles, por brincadeira:

“MAMUTE”, ou seja, “amo-te”.

“AMO-TE Sofia, Rosa, Fátima. AMO-TE Manuel, João, Fernando. AMO todos os que estão aqui presentes, neste Natal. AMO todos os que caminham neste mundo”, repito vezes sem conta na minha mente, sorrindo internamente.

“AMO-TE para sempre, Berto.”

“Feliz Natal, meu amor.”

 

Rica Sainov


Comentários

  1. Parabéns por mais uma obra à vista! Emocionei - me com o pequeno conto que postaste! Quero ler o resto!! Abraço de Natal ((( 🎄♥️)))

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  2. Querida amiga, não é um excerto, é um pequeno conto que escrevi e foi selecionado para esta coletânea da editora. Achei que era importante VER o Natal pelos olhos de quem dedicou toda a sua vida ao amor pela família. Abraço forte e Feliz Natal para todos aí em casa <3

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  3. Que belíssimo conto, Ricardo, de Natal ou de qualquer altura. Tocante!
    Parabéns pela sensibilidade, e também pela escolha da editora para o livro!
    Um abraço e um excelente Natal!

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    1. Grato pelas simpáticas palavras. Feliz Natal para toda a família!

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