Catarse
Na noite de Natal passada, os meus cães ficaram à beira de
um ataque de nervos com a tresloucada parafernália fogueteira na atmosfera
circundante. Hoje, véspera do Ano Novo, tudo me faz crer que a história se irá repetir,
porém de uma forma ainda mais inflamada.
Qual é a minha interpretação?
Todos os seres vivos, quando restringidos, presos,
amordaçados, amarrados, acorrentados, física, mental ou emocionalmente, sentem impreterivelmente
a necessidade de se libertarem.
Quem tem um cachorrinho pequeno percebe perfeitamente o que eu
quero dizer: a pobre alma, normalmente habituada à liberdade total, ávida por conhecer
o mundo, cheia de alegria de viver, a roer tudo o que encontra pela frente e a
tentar ligar-se energeticamente a tudo que a cerca, jamais esperaria que fossem
os adorados donos que a adotaram — os mesmos que lhe dão a comida e os miminhos
—, os terríveis carcereiros que lhe vão restringir, por completo, a liberdade.
O cãozinho, por norma, não compreende tal atitude e tenta, em vão, libertar-se das
correntes que o constringem. Quando se apercebe de que não consegue, fica a
uivar noites sem fim, triste e desanimado.
Quem sente repressão, seja ela de que natureza for, está
sôfrego pela libertação. E, de uma perspetiva química, até faz muito sentido,
porque o nosso cérebro está apto a libertar um cocktail de neurotransmissores
e hormonas compensatórias, sempre que consegue superar uma constrição ou uma
dificuldade. Se alguém sofre de obstipação e está “entupido” há mais de uma
semana, quando consegue finalmente defecar, tem uma sensação fantástica de catarse. O mesmo é válido para uma iminente descarga de diarreia, quando se consegue alcançar a sanita a tempo. Quem está magoado após uma separação amorosa, precisa forçosamente de chorar e
dar murros numa almofada para libertar as emoções, sentindo-se mais aliviado de
seguida. Quem estuda um mês inteiro está mortinho por sair e beber uns copos com
os amigos, quando chega ao final da época de exames.
Recordo-me perfeitamente de algo de extraordinário que aconteceu
numas férias desportivas no Algarve, em 1995 ou 1996: um amigo meu, o Zé
Botões, músico de profissão, levou o seu acordeão para um apartamento em
Portimão que compartilhava com os restantes colegas da tuna de Farmácia. Certa
noite, antes do jantar, começou a tocá-lo na varanda. Apesar dos acordes
melódicos que provinham do instrumento, naquele emaranhado de prédios pejados
de estudantes reprimidos pela época de exames por vir, a cacofonia de sons foi a
ignição de uma reação catártica em larga escala. Tudo começou quando umas
raparigas que habitavam um dos apartamentos ao lado, importunadas com o ruído, começaram
a bater uns testos em protesto. A atípica reação foi rapidamente replicada por
mais colheres de pau, panelas e testos nas varandas contíguas. De um prédio
apenas, a “loucura” alastrou-se como fogo na palha para os prédios vizinhos,
também eles impregnados de estudantes. Em minutos apenas, centenas de rapazes e
raparigas, ao estilo de uma autêntica mob, foram para as janelas e
varandas atirar papel higiénico, assobiando e, ao largo das piscinas, em
calções e biquínis, fazendo quanto barulho podiam.
Aconteceu de forma espontânea. Qualquer réplica subsequente seria vazia de nexo…
Foda-se, a isto eu chamo de VIVER!
Quem nunca vivenciou um episódio semelhante, ainda tem muito
para conhecer neste mundo.
Isto é precisamente o que se está a passar agora. A
sociedade está a ficar doente durante esta crise pandémica, porque decidiu acatar
tacitamente as imposições, sem esboçar qualquer protesto.
Já referi amplamente nos meus textos que muito pior do que a
mortalidade e a morbilidade relacionadas com o vírus será a mortalidade e a morbilidade
provocadas pelas medidas claramente desproporcionadas: os doentes que não foram
tratados para as restantes patologias, os rastreios que não foram feitos, as
doenças mentais — os ataques de pânico, as depressões, as obsessões, as
neuroses e as psicoses. Caralho... os velhos que morreram abandonados, sem um último afeto...
Os foguetes lançados durante esta quadra festiva são,
meramente, um pálido reflexo da vontade intrínseca de exprimir a libertação de
todas estas amarras que nos foram impingidas.
É certo e sabido que depois da tempestade vem a bonança.
Haverá um babyboom resultante desta crise autoimposta. Tem sido assim ao longo dos
séculos. O medo da “ameaça” transforma-se em alívio e a humanidade — instintivamente
— vai querer medrar.
À opressão segue-se a CATARSE.
Um Ano Novo próspero e Feliz para todos, num mundo em que todos sejamos capazes de ler nas entrelinhas,
Ricardo Novais
Photo by Wendy Alvarez on Unsplash
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