Subversão

"(...) por negligência ou intencionalmente, não foi capaz de te comunicar essa adenda a tempo de corrigires a irregularidade, como era, de facto, a sua incumbência. Entretanto, ficaste encalhado num incumprimento tácito. 

— O que queres dizer com “intencionalmente”?

— É peculiar de um país terceiro-mundista… Repara: os cofres estão vazios. Se eles conseguirem  "apanhar”, vamos supor, vinte como tu, neste distrito, vão reaver vinte vezes cinquenta… um milhão de euros. Se multiplicares este valor por todos os distritos, irão amealhar cerca de vinte milhões. E tudo de uma forma “legal”, estás a ver? Não se preocupam minimamente com as consequências que isto tem para as famílias… Para eles, o que conta são os números finais para apresentar nas notícias, em altura de eleições. José… somos meramente números… O tempo em que o nome, a honra, a palavra, a solidariedade ou a entreajuda valiam alguma coisa, já lá vai. Fomos invadidos por um bando de yuppies, tecnocratas, que só se interessam por satisfazer as suas necessidades pessoais… pelo telemóvel de última geração ou pelos likes, views ou tweets…(...)"

in O Cravo, o Lírio e a Rosa, de Rica Sainov, Chiado Books

Esta é uma passagem do meu mais recente romance.

Remete-nos para um diálogo em que o nosso herói, José, ao receber uma notificação de uma entidade do Estado para restituir um montante avultado de dinheiro, vai ter com um amigo seu advogado.

Para contextualizar — porque quando estiver a ler este texto pode já ter decorrido algum tempo —, estou a escrever estas linhas em meados de fevereiro de 2021.

Estamos em pleno segundo confinamento e a maioria da população, com medo de algo intangível, deixou-se manietar sem a mínima oposição. Os pequenos negócios, como o meu, estão a fechar descontroladamente, atirando as famílias para situações de verdadeiro desespero. Os cofres do Estado estão igualmente vazios e, como era de prever, já paira no ar a desditosa "caça à multa". Obviamente, quem ainda não viu atingido de morte o seu statu quo (funcionários e reformados da monstra máquina do Estado, por exemplo), alinha acefalamente com a narrativa oficial.

Sempre ouvi dizer que devemos sempre agir em boa-fé. Quer isto dizer que, se por algum motivo incorrermos numa infração, as instituições públicas deveriam, em primeira instância, alertar-nos devidamente no sentido de corrigirmos o rumo desviante, qual pai preocupado com os tropeções do filho.

Contudo, não é isso que sucede atualmente.

Neste momento, já não é o "temível" vírus que dizimou a economia e a saúde mental dos portugueses que me assusta, mas antes o toque do carteiro por volta da hora do almoço.

E... mais uma vez ele tocou hoje para me entregar uma coima de trânsito com 6 meses de desfasamento. Já é a terceira no espaço de uma semana e eu temo que ainda cheguem mais, em catadupa.

O que se passa é o seguinte: eu não contesto a minha culpa nas infrações (embora seja uma curva matreira, aquela em Matosinhos). Porém, se as autoridades agissem em boa-fé, ter-me-iam multado a primeira vez, in loco, eu pagaria — furibundo, é certo, mas pagaria — e, com a lição aprendida, não repetiria a infração (a não ser que eu fosse casmurro).

Ora, se eu passei lá seis vezes, no mesmo local, no verão, na descompressão do desconfinamento, vou pagar seis multas, podendo chegar a um salário mínimo nacional e, por conseguinte, muito difícil de suportar por quem está em casa com três filhos menores, confinado, a tentar manter a cabeça à tona da água. Se eu tivesse passado por aquele local um mês inteiro seria, indiscutivelmente, incomportável.

Esta, meus caros amigos, é a triste realidade em que nos vemos mergulhados.

Tenham cautela pois andamos todos — efetivamente — à mercê de um inimigo torpe, invisível e sorrateiro.

Independentemente da culpa, não deixa de ser um autêntico atentado às famílias por parte das autoridades, embandeiradas em arco no limbo que separa a ética da legalidade.

VOTL,

Ricardo Novais

Imagem de klimkin por Pixabay 

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